quinta-feira, 7 de maio de 2009

Melhor é ser como Joaquim

Hoje em dia, com menos de 1 mês de namoro, eles já dizem o “eu te amo” tão pesado de significados, amigos de data breve já se amam e ficarão marcados pela eternidade na memória um do outro. Ama-se com uma facilidade assustadora e “desama-se” com um desinteresse inaceitável. Esquece-se que amar inclui sofrer, renunciar, engolir á seco o que está instalado aí, pronto para ser disparado e fazer sofrer quem se ama... ou se diz amar.
Feliz é Joaquim, o Joaquim de João Cabral de Melo Neto... cujo amor comeu o nome, a identidade, o retrato. O amor comeu sua certidão de idade, sua genealogia, seu endereço. O amor comeu seus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde ele escrevera seu nome. Como sofrer se não existe o eu?
O desgosto vem quando as diferenças aparecem, quando deixa-se de aceitar aquele defeito que no começo...da amizade, do namoro, do casamento, da convivência...parecia tão pequeno, tão mínimo diante de tamanho sentimento. A paciência, a impaciência, a tolerância, a intolerância, o barulho que ele faz quando estrala o pescoço, a mania que ela tem de apertar os olhos e fingir não ouvir, a preferência pelo azul, coisas deles, coisas dela, coisas dele... apenas coisas, preferências, manias, gostos e desgostos. Com o tempo o amor come roupas, lenços, camisas. O amor come metros e metros de gravatas. O amor come a medida dos ternos, o número dos sapatos, o tamanho dos chapéus. O amor come a altura, o peso, a cor dos olhos e dos cabelos. O amor come a vontade de amar.
E depois de algum tempo descobre-se que não se ama mais, simples assim! Ás vezes se odeia, se é indiferente, às vezes ainda se ama mas não se admite... o amor come até as certezas. Restam as dúvidas, os questionamentos, os possíveis erros, os pedidos de perdão, as acusações e justificativas. É a hora da dor. Para alguns um antagonismo imensurável. Uma dor forte, que não diminui com analgésicos... dor de alma.Difícil saber se o amor comeu os remédios, as receitas médicas, as dietas. Comeu as aspirinas, as ondas-curtas, os raios-X. Comeu os testes mentais, os exames de urina.
É o fim das palavras bonitas, da compreensão acima de tudo, do sentimento eterno que trouxe o infinito para o agora. E ponto. O amor comeu na estante todos os livros de poesia. Comeu em livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
E o amor chegou e depois e se foi!
Faminto, o amor devorou os utensílios de uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de utensílios: banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto, mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor roeu a infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu o Estado e a cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento do relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
Melhor é ser como Joaquim...


“O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.”
Os Três Mal-Amados - João Cabral de Melo Neto

Nenhum comentário:

Postar um comentário